Extraídas de polpas de dentes decíduos, elas podem ser preservadas para salvar vidas - saiba o caminho que percorrem do consultório até os tubos de criopreservação
"Estamos vivendo mais - atualmente, a expectativa média de vida em todo o mundo é trinta anos maior do que na década de 1950. Muito dessa conquista se deve às medidas estabelecidas para prevenção, controle e tratamento de doenças infectocontagiosas. Maior longevidade, no entanto, nos deixa mais suscetíveis ao impacto das doenças degenerativas. Vencer patologias como cânceres, cardiopatias, osteoartrites e doenças autoimunes, por exemplo, é o grande desafio do século XXI. Nesse novo cenário, o papel das células-tronco não deve ser visto como ficção científica: os avanços nessa área são tão importantes quanto o desenvolvimento de antibióticos – uma verdadeira revolução que marcou o século passado.
A ciência fez as primeiras descobertas a respeito das células-tronco na década de 1960 – anos depois, as agrupou de acordo com sua origem: hematopoiéticas, extraídas do sangue do cordão umbilical, ou mesenquimais, de outras partes do corpo. Estas últimas possuem grande capacidade de multiplicação, com qualidade também fora do corpo, em laboratório, e de diferenciação em células especializadas formadoras de órgãos e tecidos duros. Além disso, as células mesenquimais possuem uma reconhecida competência imunomodulatória, o que lhes confere um grande potencial em condições onde a resposta inflamatória exacerbada se constitui em um problema, caso das doenças autoimunes, algumas cardiopatias, doenças neurodegenerativas, entre outras. A presença de células-tronco mesenquimais em polpas dentais decíduas, o popular dentinho de leite, foi inicialmente descrita em 2003, no Instituto Nacional de Saúde em Bethesda (EUA). Desde então, muito vem sendo pesquisado, desenvolvido e apresentado acerca do potencial das células-tronco adultas. “Por conta de sua grande capacidade imunomodulatória, alta plasticidade e jovialidade relacionada à origem embriológica do órgão dentário, e ainda por estar presente em um elemento dentário que será substituído por um permanente ao longo da infância, as células-tronco presentes nas polpas dentais decíduas representam um importante tesouro a ser considerado para uso em Medicina e Odontologia Regenerativa”, afirma José Ricardo Muniz Ferreira, integrante da Comissão de Odontologia Regenerativa do CROSP.
Origem embrionária
Um único dente de leite, após o processo de multiplicação celular para o armazenamento, pode gerar entre 5.000.000 e 7.000.000 de células, distribuídas em quatro criotubos. Há até capacidade de nova expansão, uma vez que as células-tronco mesenquimais provenientes de polpas decíduas apresentam alta potência e previsibilidade de multiplicação, mantendo a qualidade. Os dentes de leite são destaque na obtenção de células-tronco mesenquimais em razão de sua origem embrionária (a partir de crista neural), a qual atribui grande jovialidade a essa fonte de células. Com isso, é alta a capacidade para multiplicação e diferenciação com qualidade; outro fator positivo é a facilidade para obtenção. Já os dentes permanentes também possuem células-tronco em sua polpa, mas elas envelhecem com o indivíduo, perdendo ao longo do tempo a plasticidade ou a capacidade de manter a qualidade durante os processos de multiplicação e diferenciação. Terceiros molares em processo de rizogênese com indicação para exodontia também são considerados uma fonte rica para obtenção de células-tronco mesenquimais com qualidade, devido ao volume e jovialidade das células.
Caminhos promissores
Existem diversos trabalhos em curso que vêm demonstrando o papel relevante dessas células em diferentes frentes da Medicina e Odontologia Regenerativa. Na área de terapia celular, pelo transplante ou injeção de células-tronco vivas, diferenciadas ou não em um paciente, elas têm a capacidade de substituir ou regenerar células ou tecidos danificados. Podem, ainda, gerar órgãos funcionais e imunologicamente compatíveis em laboratório, por meio do direcionamento da diferenciação de células-tronco associadas a um arcabouço específico (órgão previamente descelularizado).
Na área da pesquisa, as células-tronco podem recriar uma determinada doença em laboratório – como Alzheimer, Autismo e Parkinson, por exemplo – e assim permitir uma investigação mais detalhada da patologia, para que se consiga desenvolver novos tratamentos. Outra finalidade potencial é o desenvolvimento de novos medicamentos sem a necessidade de testes em animais e humanos – nesse caso, as células-tronco podem gerar tecidos ou órgãos de interesse para avaliação local e sistêmica. Em Odontologia, há trabalhos clínicos avaliando o potencial dessas células em processos regenerativos ósseos, periodontais, endodônticos e mesmo relacionados à formação da terceira dentição. Eles vêm demonstrando o grande potencial das células-tronco em processos regenerativos.
Seguindo à risca os protocolos
A retirada do material biológico para obtenção das células-tronco deve ser feita em conformidade com um protocolo específico, aprovado pela Vigilância Sanitária. A(o) cirurgiã(o)-dentista credenciada(o) a um Centro de Processamento Celular (CPC), em acordo com a Resolução 157/2015 do Conselho Federal de Odontologia sobre Terapias Avançadas em especial Células-tronco, e devidamente capacitada(o) por esse Centro, deverá estar apto para cumprir todos os passos correspondentes à etapa clínica do processo (veja o box). A capacitação pode ser feita presencialmente ou por meio de plataformas de ensino a distância.
O protocolo para coleta, processamento e armazenamento de células-tronco mesenquimais deve seguir premissas técnicas e estar em acordo com as resoluções determinadas pelas agências regulatórias responsáveis. No ano passado, a Anvisa publicou duas resoluções normativas sobre o assunto – a RDC 214/2018 discorre sobre tratamentos com células- -tronco e estabelece as boas práticas em células humanas para uso terapêutico e pesquisa clínica que necessitam de registro para validação e reconhecimento. Já a 260/2018 dispõe sobre as regras para a realização de ensaios clínicos com produto de terapia avançada investigacional no Brasil.
Em 2015 o CFO publicou a resolução 157, que trata de terapias avançadas, em especial células-tronco, definindo inclusive o papel da(o) cirurgiã(o)-dentista nesse processo. Vale salientar que tal resolução deverá passar por uma atualização para que se mantenha alinhada com o que foi estabelecido pela Anvisa nas RDCs 214 e 260.
Do dente de leite para o futuro
O caminho desde a avaliação da(o) cirurgiã(o)-dentista à multiplicação e criopreservação das células-tronco nos CPCs:
NO CONSULTÓRIO
Anamnese e avaliação
O(a) cirurgião(ã)-dentista devidamente credenciado a um Centro de Processamento Celular faz a anamnese do paciente, seguida de avaliação clínica e radiográfica, para identificação do dente de leite a ser considerado para exodontia. Todo dente de leite é uma fonte potencial, desde que não tenha sofrido contaminação (por cárie ou exposição da polpa ao meio bucal) que possa comprometer o tecido pulpar. É importante que o dente decíduo possua 1/3 de volume de raiz presente e que o permanente subjacente esteja com 2/3 de sua rizogênese completos. Dessa forma, não será caracterizada a indicação precoce para exodontia do elemento decíduo.
Sorologia
Serve para a verificação de doenças infectocontagiosas pré-existentes, em acordo com as exigências estabelecidas pela Anvisa. O resultado positivo para quaisquer doenças não inviabiliza o processo, mas é base para que sejam estabelecidos processos de biossegurança de modo a controlar o risco de contaminação cruzada.
Coleta agendada
A data deverá ser programada previamente para que a(o) cirurgiã(o)-dentista responsável pelo procedimento possa receber em seu consultório um kit coleta. Ele contém a caixa térmica de coleta com dois frascos preenchidos com meio de cultivo basal para transporte enriquecido com solução antibiótica, um folheto explicativo sobre o procedimento e o lacre unívoco, para garantir o controle e a não violação do material. Esse material é entregue por uma empresa devidamente homologada para transporte de material biológico, sob a responsabilidade do CPC.
Extração
O procedimento para exodontia deverá seguir o protocolo técnico convencional, devendo a(o) cirurgiã(o)-dentista inserir o elemento dental no tubo estéril imediatamente após a exodontia, fechando e lacrando em seguida esse recipiente com um selo de identificação do paciente por código de barras. Desse modo, estará garantido o controle da amostra e a identidade do indivíduo.
Em trânsito
O transporte do dente de leite coletado desde o consultório até o CPC deve acontecer em condições adequadas e dentro de um prazo de até 48 horas. A responsabilidade por essa etapa é do próprio Centro, que deve trabalhar com empresas especializadas e devidamente homologadas pela vigilância sanitária local para transporte de material biológico terrestre e aéreo.
NO CPC
Chegada do dente
Após a recepção e Certificação de Conformidade em todo o processo até aquele momento, há o preparo e a entrada do tubo na área de trabalho (área limpa ISO 7 com Cabine de Segurança Biológica Classe II A2).
Processamento
Após a limpeza do dente, é feita a extração da polpa, digestão do conteúdo pulpar para isolamento das células-tronco desejadas, cultivo das células para que sejam multiplicadas em laboratório à quantidade desejada. Uma polpa dental decídua contém, em média, entre 5.000 e 50.000 células, que serão multiplicadas à ordem de aproximadamente 5.000.000 de células em quarta passagem.
Controle de Qualidade
É realizado em uma alíquota das células que será descartada, envolvendo os testes para contagem e viabilidade celular, certificação de esterilidade, verificação da integridade genética após a multiplicação, indução a multipotência e imunofenotipagem.
Criopreservação
Nessa etapa final, as células-tronco são criopreservadas em nitrogênio líquido à temperatura de - 196º C, que é capaz de inibir por completo os três fatores responsáveis pela degradação de qualquer material - calor, tensão de oxigênio e reação química."
Artigo extraído da Revista do CROSP - Ano VI - Número 11 - Dezembro 2019
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